quinta-feira, 5 de maio de 2011

Reminiscencias: Café da Manhã



Era uma manhã de um dia qualquer, de um mês qualquer, bem no meio do século passado.

Uma velha e corroída porta de tábuas encaixadas, cansada, encostada estava na parede da sala a mostrar-me o brilhante dia que recém-nascido estava lá fora; entre eu e este dia, uma cancela de ripas pontudas, molenga, que a muito não era nada além de um símbolo, a frágil marca de um limite, a divisão entre dois mundos nem um pouco diferentes entre si, úmida ainda pela chuva da noite que se foi, com seu inútil e enferrujado trinco jazia inclinada a apoiar-se na madeira do umbral de uma porta ainda mais antiga.

Por aquele retângulo mágico, via eu o brilho do radiante dia que vinha a galope nas rasas poças d'água sobre a areia clara, encharcada, do corredor que ligava minha casa e varias outras, à rua propriamente dita; passei pela cancela a qual expressou seu cansaço e sua idade no doloroso ranger de suas dobradiças, aliás o único som por mim audível nesta manhã além do trinar dos pássaros e o bater de caçarolas na cozinha, naquele momento aparentemente tão distantes como o fim do mundo.

Meus pés descalços tocaram a mãe Terra pela primeira vez neste augusto dia.

Senti a sua tenra maciez, sua firmeza suave ao me sustentar, a delicadeza com que se infiltrava por entre os dedos dos meus pés; aspirei um ar de imenso frescor, orvalhado eu diria, que foi-me refrescando os pulmões, limpando o meu sangue e clareando minha mente.

Pulei sobre as poças d'água; todas elas eu acho.

Depois caminhei sobre aquele tapete de singular frescor, cuja cor era de um tom areia bem claro mas ligeiramente avermelhado, caminho este ladeado por altos muros escurecidos pelo tempo e pelo musgo verde escuro até a calçada de ladrilhos ásperos que acompanhava incondicionalmente as guias e a rua de paralelepípedos; olhei para trás e vi minhas pegadas enchendo-se d'água, eram únicas, fora eu o primeiro a por ali passar neste dia.

A calçada, a rua, as casas, a cidade, tudo estava úmido e brilhava ao sol que subia ágil pela elíptica, prometendo em seu zênite uma luz tão clara como a só vista no paraíso e um calor, um calor de fazer inveja ao inferno.

Naquele momento pensei que somente eu e a natureza estávamos despertos e toda a cidade ainda dormia.

Uma voz, eis que, me chamava pelo nome.




Não, não era só eu e a natureza que estávamos acordados e a vós que era distante se fez próxima a por mim clamar, virei-me e de volta à realidade, corri para o ninho em cuja a entrada minha mãe estava a me aguardar com uma colher de pau na mão, recém-saída do coador de café e ainda envolta nos vapores do mesmo.





Minha casa tinha paredes caiadas de branco, meu pai estava a abrir a veneziana de madeira pintada de verde do quarto da minha mãe e olhava para mim sorrindo, embaixo da veneziana em uma calçadinha de cimento repousavam algumas latas de vinte litros nas quais viviam felizes (eu acho) samambaias que aproveitavam a água da chuva que caia após rolar pelo telhado

    • Menino! (hoje eu sei, que estava se fazendo de brava)
    • Não entre em casa sem limpar-se desta lama toda e venha logo tomar café.




Por um instante eu pensei que ia me bater com a colher, mas mudou de ideia, eu acho que não queria ter que lavar a lama que ficaria na colher de pau, no entanto me restava uma questão a ser resolvida e resolvida por mim, já que ela se fora para o interior da casa de novo: como eu iria entrar para tomar o café da manhã se tinha que me limpar antes de entrar e não via como fazer isso?





Ah...

As mães...

Só elas conseguem ser tão antagônicas e lógicas ao mesmo tempo!

Meu pai presenteou-me com a solução um pouco antes de sair da janela; ainda sorrindo apontou-me uma poça d'água limpa entre as samambaias e a parede da casa, lavei os pés, foi tudo o que deu para fazer além de manchar as brancas paredes, e entrei sala a dentro para o meu café matinal.

Mais uma vez a cancela rangeu, pisando no vermelhão do piso passei pela mesa redonda e suas cadeiras de madeira maciça, cujo suporte central e único era grande o suficiente para a gente brincar de esconder em casa, era só se amontoar sobre as revistas que la eram guardadas; passei pela cristaleira de madeira negra e as poucas louças que guardava quando então ouvi minha mãe novamente a minha pessoa se dirigir:

- Se você por as mão nesta cortina eu te mato, vá lavar-se no tanque e anda logo eu não quero que você e seus irmãos morram de fome.

Minha mãe abriu a cortina de barbante branco trançado muito limpinha e eu passei indo direto para o tanque onde tive que tomar um banho para ficar de acordo com os padrões de limpeza da minha mãe.

Só uma mãe pode nos ensinar o valor da vida e da limpeza com tamanha precisão!



De volta a cozinha, passei mais uma vez pelo agradável calor do fogão à lenha e sentei-me à mesa para o café da manhã.



Era uma mesa retangular de tábuas justapostas muito brancas de tanto ser lavadas, acompanhada de cadeiras de madeira simples mas bambas pelo tempo e pelo uso.



À mesa, sentados em suas cadeiras, já estavam meu pai e meus dois irmãos esperando apenas por mim para o desjejum matinal e, é claro, não muito felizes com o meu atraso.

Minha mãe me examinou cuidadosamente e vendo que estava dentro dos seus padrões de asseio, começou a servir o café da manhã.

Seu longo cabelo castanho escuro, ainda solto naquela manhã, por diversas vezes tocou-me os braços e o rosto, enquanto atendia os meus irmãos e o meu pai com as coisas normais para um café matinal dos anos cinquenta; sua voz, calma e sonora, comentava animadamente o que faríamos naquele dia; iriamos ao sítio, à casa da “Tia Ana”, onde ela iria ajudá-la na feitura do almoço:

- Era macarronada!!!

Foi ai que eu percebi...

Era domingo!

Uma linda, fresca e calma, manhã de domingo.


In memoriam de
Lauracema Borges
"Tia Ana"
"Tia Braulina"
"Vovó Salvina"
Todas simplesmente mães

mkmouse

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